Variação #8:

por Bruna Maria*

 

Os que avançam de frente para o mar

E nele enterram como uma aguda faca

A proa negra dos seus barcos

Vivem de pouco pão e de luar.

Lusitânia, de Sophia de Mello Breyner Andresen

 

Lisboa

Lembro de casa toda vez que vejo o mar. Há a presença de todas as histórias possíveis nesta visão plácida, à distância, na qual a água parece um espelho intacto, imóvel. Reflete os sonhos que às vezes perco. Não raro desejo tomar um navio, e voltar. Voltar: para a casa que abriga a primeira linha de uma história universal. Mas, estou aqui. E isso custa muito. Portanto, determino não sentir este lampejo de fuga, esta disposição de saudade. Assim, centro-me e fico.

Quando for mais tarde, estarei em um desses bondes, como os antigos. Há um encontro marcado e, dessa vez, prometi comparecer. Será hora de devolver as chaves do apartamento. Será hora de definir um novo dia que possa, quem sabe, acabar com a recordação de fraquezas tão mais visíveis com a incidência da luz que vaza pelas brechas da cortina.

Quando vejo o mar, assim de longe como vejo agora, tenho desejo de partir sem me despedir. É como o último presente que se pode dar: nunca terminar, deixar para sempre em contínuo, sem que eu devolva as chaves, sem que eu ouça as últimas determinações, sem que eu tenha de difundir as sentenças que reafirmam que, sim, nós falhamos, nós sempre falhamos em algum ponto, e que teremos que descobrir uma forma de coabitar a mesma cidade, de redescobrir as nossas peles, de nos esconder em outros cafés.

O mar que vejo, eu vejo de longe. É o meu fracasso. Está estampado no verde-azul tão calmo que se define à distância. Não me cabe o esforço do movimento, a audácia da partida. A coragem não pode me consolar. E fico.

Ficando, eu penso. E é provável que, partindo, eu vá dar no mesmo lugar em que estou, apenas com a diferença de ângulos: espelho reverso – eu, ele, mar, bondes e cafés refletidos, estampados para onde quer que eu vire o espelho.

De noite, quando as luzes acenderem, a cidade terá um céu imenso, longe do brilho das lâmpadas, e eu descerei do bonde na viela pouco iluminada. Alguém me espera.

Deixarei as chaves do apartamento em um dos bolsos de seu paletó. As palavras serão excesso. Daremos um último beijo, mecânico, amor de hábito, maquinal. E um bonde escuro estará parando como a me esperar para a volta. Eu tomarei este bonde, sem olhar para trás.

Voltarei. Voltarei toda a história, todo o caminho, até tornar a ver o mar, ancorada no breu indefinido de uma noite.

– Onde é mesmo que nós estávamos?

E não haverá nenhuma estrela no céu.

*Bruna Maria:

carioca, formada em Letras e atualmente mestranda em Literatura Portuguesa (UERJ). Acaba de escrever seu primeiro romance, que foi selecionado, em 2010, pela Fundação Biblioteca Nacional para receber amparo do Programa Nacional de Apoio à Pesquisa durante o término de sua escritura. Tem alguns contos selecionados em antologias a serem publicadas em 2011. Foi 3º lugar no concurso de contos promovido pela Casa do Novo Autor Editora, em março de 2011. Tem textos publicados em sites da internet, como na Revista Germina Literatura e no Blog do Jornal Plástico Bolha. Além disso, edita este projeto aqui. Enquanto não publica seu romance, ela bloga sobre leituras e afins em http://blog.brunamaria.com.   

 

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